Sério problema de saúde pública mundial, os acidentes do trabalho (AT) não raramente causam graves danos físicos ou psíquicos aos vitimados, levando-os ao afastamento temporário ou definitivo de suas funções e provocando seqüelas permanentes ou mesmo a morte. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2004), os riscos dos trabalhadores agrícolas de morrer no local de trabalho são, pelo menos, duas vezes maior que os dos empregados nos demais setores. O problema acidentário relativo aos trabalhadores da cultura da cana-de-açúcar adquire dimensão ainda maior na presente conjuntura, diante da atual importância dessa cultura na economia paulista e da perspectiva promissora de ampliar a presença do álcool na matriz energética.
Diante das perspectivas favoráveis da cultura canavieira em nosso Estado, chamar a atenção para essa questão no dia da Prevenção dos Acidentes de Trabalho é particularmente oportuna, na expectativa de que os atuais estabelecimentos rurais e os novos investimentos dirigidos a essa área levem em conta ações que contribuam para evitar a ocorrência de novos acidentes do trabalho no setor.
Aspectos Jurídicos
A Lei 8.213, de 1991, que dispõe sobre os benefícios da previdência social, em seu artigo 19º, define AT como todo evento que decorra do exercício do trabalho, a serviço da empresa, e que provoque lesão corporal ou perturbação funcional que leve à morte ou à redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. Os artigos 20º e 21º também con- sideram AT outras entidades mórbidas, como: doenças profissionais; acidentes na execução de ordem da empresa, ainda que ocorridos fora do horário ou local de trabalho; acidentes no percurso da residência para o local de trabalho ou vice-versa e na hora das refeições (BRASIL, Lei 8.213/91).
Os ATs ocorridos com a população cadastrada na previdência social de- vem ser compulsoriamente notificados por meio da Comunicação de Acidentes do Trabalho (CAT), que constitui a principal fonte de informação para os estudos do tema.
Os ATs podem ser divididos em três categorias: acidentes-tipo, decorrentes da atividade profissional desempenhada pelo trabalhador; acidentes de trajeto, ocorridos no percurso entre a residência e o local de trabalho e vice- versa (desde que seja o percurso habitual e condizente com os horários de entrada e saída) e os ocorridos nos horários de refeição; e doenças do trabalho, ocasionadas por qualquer tipo de doença peculiar a determinado ramo de atividade.
Particularidades do trabalho agrícola
Os trabalhadores agrícolas compõem uma das categorias profissionais com maior risco de sofrer algum tipo de acidente no exercício de seu trabalho. Desempenham diversificada gama de atividades: desde o preparo do solo para plantio até a colheita, passando pelo transporte e armazenagem de produtos e insumos agrícolas, além de inúmeras atividades específicas desenvolvidas paralelamente, como abertura de canais de irrigação e drenagem; construção e manutenção de estradas, silos, armazéns, estábulos, cercas; controle de pragas e doenças; aplicação de adubos, etc. A atividade agrícola também utiliza varia- do número de ferramentas, máquinas, implementos, produtos químicos, substâncias inflamáveis, entre outras que também implicam risco a seus usuários. Decerto, em cada uma dessas atividades podem ocorrer acidentes leves ou graves, comprometendo a saúde do trabalhador (MTB, 1981).
Embora tais riscos sejam comuns aos trabalhadores de qualquer cultura, a importância econômica da cana-de-açúcar em São Paulo, torna-a de especial interesse para estudos dessa natureza.
Estudo da Fundação Seade e Fundacentro
A Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e a Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança do Trabalho (Fundacentro) celebraram um convênio para desenhar o perfil demográfico e epidemiológico dos trabalhadores na cultura da cana-de-açúcar, a partir das informações referentes aos ATs registrados no meio rural paulista, entre 1997 e 1999.
Apesar de esse estudo compreender apenas os trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho, apresenta importante subsídio para o entendimento da questão acidentária no meio rural. Sua focalização nos trabalhadores envolvidos na produção da cana-de-açúcar – cujas relações de trabalho são em grande parte formalizadas no Estado de São Paulo – possibilitou conhecer particularidades desse grupo. Outra contribuição importante refere-se à ampla abrangência geográfica. De modo geral, as pesquisas sobre o tema contemplam estudos de caso de determinada região. O presente estudo, contudo, cobriu os acidentes ocorridos com os trabalhadores da cultura da cana-de-açúcar de todo o Estado de São Paulo.
Resultados
Esse estudo demonstrou que do total de acidentes do trabalho sofridos pela população envolvida em atividades rurais, 43% (24.843) ocorreram na cadeia produtiva da cana-de-açúcar. Para esses trabalhadores o total de ATs registrados elevou-se em 4%, ao passarem de 8.186 para 8.517 eventos no período analisado.
Considerando que parcela expressiva da cana-de-açúcar produzida em São Paulo ainda se baseia no corte manual após a queimada – processo que se mantém há séculos – o desgaste físico e o número de ATs são necessariamente vultuosos. Decorrem, principalmente, da postura física exigida para o corte da cana, do uso de ferramentas perigosas, como o afiado facão (machete), da realização de atividades repetitivas e desgastantes e do transporte de material excessivamente pesado. Além disso, o próprio ambiente de trabalho representa perigo ao trabalhador, uma vez que o submete à exposição prolongada ao sol, a chuvas e descargas atmosféricas, além da presença de animais peçonhentos (FREITAS, 2005). Além de os cortadores e colhedores estarem expostos a esses riscos, os demais trabalhadores – como motoristas e operadores de máquinas agrícolas – não estão isentos a eles.
A maioria dos ATs com trabalhadores da cana-de-açúcar corresponde aos acidentes-tipo (87%). A baixa presença de doenças do trabalho (por volta de 10%) pode ser resultado da dificuldade ou demora no atendimento médico adequado, capaz de identificar a patologia com nexo causal com o trabalho. Os acidentes de trajeto têm participação média ainda menor (1,6%), mas sua ocorrência elevou-se substancialmente no período: de 106 para 158 eventos. Entre as razões para esse aumento encontra-se a freqüência crescente dos desloca- mentos realizados pelos trabalhadores rurais, agravados, entre outros motivos, pelas condições de veículos e estradas.
A referida pesquisa constatou, também, que a quase totalidade desses acidentes ocasionou afastamento das atividades laborais por determinado período. Do total de trabalhadores acidentados, 63% ficaram afastados por menos de 15 dias e 26%, por até um mês. As demais conseqüências dos ATs – incapacidade permanente ou invalidez e óbitos – apresentam baixo percentual de ocorrência, não ultrapassando 1% do total de ATs sofridos por essa categoria profissional que foram registrados.
Cerca de 85% dos trabalhadores acidentados no período eram homens, re- fletindo a composição majoritariamente masculina dessa categoria profissional. Grande parte deles (83,0%) tinha menos de 40 anos de idade e 60,0% ainda não tinham completado 30 anos. Essas proporções são superiores às observa- das para os acidentes envolvendo os demais trabalhadores do meio rural (79,6% e 55,2%, respectivamente). Em 1999, os trabalhadores jovens, de 20 a 24 anos de idade, representavam a maior parcela dos acidentes que atingiram os trabalhadores da cana-de-açúcar, respondendo por quase 29% de todos os registros. Segundo Silva (2000), as usinas sucroalcooleiras exigem, para contratação de seus empregados, idade inferior a 25 anos, o que corrobora as características do processo produtivo, que demanda grande esforço físico da força de trabalho.
O tronco e os membros superiores (braços e mãos) foram as partes do corpo mais afetadas pelas doenças do trabalho, conseqüência direta da postura inadequada e dos esforços contínuos e repetitivos, além do carregamento de peso excessivo.
No caso dos acidentes-tipo, ferimentos causados por instrumentos de corte são os eventos mais freqüentes. Pés e pernas são as partes do corpo mais atingi- das, seguidas pelos membros superiores. Outra parte do corpo bastante vulnerável ao acidente-tipo são os olhos, facilmente feridos pelas folhas e pontas da cana-de-açúcar, além da fuligem decorrente da queimada.
Tais informações, ainda que parciais, mostram que os ATs na cultura canavieira têm provocado perdas evidentes ao trabalhador, à empresa, ao Estado e à sociedade. Têm atingido particularmente indivíduos dos segmentos mais jovens da população ativa, afastando-os de suas atividades cotidianas e, em alguns casos, incapacitando-os para o trabalho e mesmo levando-os a óbito.
Tendo em vista as características dos acidentes registrados, ações internas aos estabelecimentos rurais e a própria conscientização dos trabalhadores quanto ao risco em que incorrem na sua atividade cotidiana, são iniciativas que podem e devem ser implementadas.
Referências Bibliográficas
BRASIL. Benefícios da Providência Social: Lei 8.212 e 8.213 de 24/07/1991. Disponível em: http://notes.alerj.rj.gov.br/constfed.nsf/0/af47 ff4f967 d639603256562006d2e74?OpenDocument> [2003].
FREITAS, R.M.V. Os registros de acidentes do trabalho no meio rural paulista: as culturas sucroalcooleira e de frutas cítricas entre 1997 e 1999; 2005. [Dissertação de Mestrado – Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo].
OIT. Organização Internacional do Trabalho. 2004 [online]. Disponível em: http://www.oit.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/safe_day/ download/safeday_dados_estatisticos.pdf> [2004 mai.12].
MTB. Ministério do Trabalho – Fundacentro. Segurança e saúde ocupacional rural no Brasil. Informe à OIT. Brasil. 1981.
Silva, M.A.M. A precarização do trabalho feminino na cana. In: IV Congresso Português de Sociologia; 2000 mai 17-20; Buenos Aires (Argentina). Dispo- nível em: http://www.alat.org/PDFpt/Cortes/GYMT_MoraesSilva.PD> [2004 Fev. 13].